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Olá amigos!

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domingo, 3 de junho de 2012

A Canção Que Salvou o Rei



Depois de ter recebido uns dinheiros que lhe deviam em Dürenstein, Black Hans, o usurário, regressou a sua casa num estado verdadeiramente alarmante.
- Que hei de fazer - dizia ele - se os cruzados me atacarem?
A grande cruzada, na qual o rei Ricardo Coração de Leão da Inglaterra tomara parte, tinha fracassado. Ricardo tinha desaparecido de maneira estranha e a Europa transbordava de ferozes aventureiros que tinham regressado da Terra Santa esfarrapados, esfomeados e sem meios pecuniários para se sustentarem. Era perigoso viajar, sempre se estava sujeito a que surgisse algum soldado derrotado que pedisse, com a ponta da espada, pão ou dinheiro.
Black Hans caminhava pelas altas e rochosas margens do Danúbio. Subitamente, uma forma estranha e selvagem correu para ele. Hans começara a tremer ao ver aparecer a ponta de uma espada; mas o mendigo começou a rir e, aproximando-se mais, mostrou o que Hans tinha julgado ser uma arma e que afinal não era mais que uma lira, como as que usam os trovadores para se acompanharem nas suas canções.
O homem era de alta estatura, jovem e formoso, longos cabelos louros, faces macilentas; o seu trajo era um conjunto de farrapos.
- Meu bom senhor - disse ele tirando o gorro, fazendo uma reverência - não quero esgrimir nem pedir dinheiro. Quero apenas que me responda a umas coisas. Há algum castelo aqui próximo onde se possa obter comida e alojamento em troca de eu lhes dar a conhecer a Gaia Ciência?
- Gaia Ciência?! - exclamou Hans, contemplando a triste figura que tinha diante de si. - Mas que quer dizer com isso?
- Ó grosseirões! Ignorantes grosseirões! - protestou o esfarrapado trovador, cujo nome era Blondel, encolerizado. - Gaia Ciência é o nome de uma nova e doce poesia inventada na risonha Provença. Nunca ouviu falar de Ricardo, o rei poeta da Inglaterra, que divulgou esta nobre arte de Londres até a Palestina?
- Para que fala em Ricardo da Inglaterra? - disse o usurário, desconfiado. - Acaso o procura?
E olhou-o com desconfiança.
- Que tem a ver um pobre mendigo, como eu, com o rei da Inglaterra? - respondeu o trovador, dando uma gargalhada. - Quer saber o que procuro? Que me dêem de comer e novas do meu amigo. Pode agora dizer se terei a boa sorte de o encontrar por estes sítios?
- Olhe, a uma légua daqui e seguindo a corrente do rio, encontrará o castelo de Dürenstein. - explicou Hans, num tom áspero e cheio de dúvida. E acrescentou enquanto se afastava rapidamente:
- Quem quererá ouvir as suas canções francesas?
Assim que o trovador perdeu de vista o usurário, deixando cair a lira, deitou-se no chão, tapando o rosto com as mãos e desatou a chorar como uma criança.
- Procuro-o em vão! - murmurou tristemente. - Ricardo, meu Ricardo! Queria saber onde está e daria a vida por sua liberdade. Mas vejo que é impossível. Talvez tivesse naufragado, pois a história de sua paixão secreta é um falso boato que os inimigos fizeram circular.
Blondel ficou durante muito tempo estendido no chão, soluçando amargamente. Era um nobre moço da Picardia que, como muitos outros senhores do seu tempo, se entregara à agradável vida de trovador. Nuns jogos florais realizados no sul da França, tinha ele conhecido Ricardo e ganho o prêmio oferecido ao primeiro cantor; e, em vez de ficar zangado com Blondel por tê-lo vencido, o valente e generoso rei da Inglaterra deu-lhe umas terras e fê-lo seu companheiro. Desde aquela ocasião viveram sempre juntos e dedicaram-se à poesia.
Tendo Blondel sofrido um acidente, não pôde acompanhar Ricardo à Terra Santa; mas quando se espalhou pela Europa o boato de que o tinham feito prisioneiro e secretamente metido numa prisão quando regressava à Inglaterra, o valente cavaleiro trovador resolveu arriscar a vida na tentativa de encontrar o lugar onde o seu rei e senhor estava encerrado.
- De nada me serve o pranto, a tristeza. - disse finalmente, levantando-se e procurando a sua lira. - As lágrimas não encontram o seu cárcere, nem levantam a aldraba da porta.
Havia muito tempo que andava errante pelo mundo; com aquele fim, tinha saído da Picardia vestido com o seu mais elegante e lindo traje, mas agora já estava tudo feito em farrapos e os sapatos completamente gastos. Em vez de ser recebido com todas as honras devidas a um cavaleiro-trovador, teve que ir para as cozinhas e suas canções valiam-lhe uma boa ceia e uma cama.
Caminhando sempre pelas estreitas gargantas, por onde o danúbio rugia e lançava a sua espuma, chegou à planície onde se ergue a cidade de Viena.
Ali, no sítio de maior largura do rio, aparecia o castelo de Dürenstein, edificado no alto de um monte e rodeado por uma muralha. À margem do rio, havia uma aldeola. Blondel ainda tinha dinheiro para comprar um pouco de pão e de vinho, e assim o fez. Mais animado, começou a percorrer os arredores do castelo cantando em alta voz.
Num calabouço do castelo, no qual apenas entrava um raio de luz, um homem de alta estatura, robusto e de aspecto imponente, passeava, inquieto.
- Dois anos! Dois anos! - exclamou, cheio de amargura. - E nem sequer um só dos meus vassalos tentou socorrer-me. É para enlouquecer. Meu irmão João e o conde de Northumberland, Longchamp e Pusey, a quem cumulei de honras e riquezas, devem saber perfeitamente que o duque da Áustria me retém prisioneiro, contra todas as leis divinas e humanas. Mas darão eles, por acaso, um real para o meu resgate? Não, certamente; apoderaram-se do meu reino e continuaram exercendo nele o seu poder, deixando-me morrer aqui como um miserável.
Assim pensando, pôs-se a olhar através de uma fenda que havia na parede e que lhe servia de janela. De repente, soltou uma risada amarga e disse:
- Vamos ver se ainda sei rimar...
Passeou durante certo tempo pelo calabouço compondo frases e rimando-as e, em seguida, tomando a sua lira, começou a cantar suavemente, a meia voz, os seguintes versos:
Sabei, ingleses de Anjou e Turena
Sabei, meus nobres, os de peito bravo
Pra me livrarem agora de escravo
De nada servem trabalhos e pena
Eis-me sem consolo, à mercê deixado
De um poderoso que me tem cativo
Em tristeza e tédio pra sempre vivo
Ninguém sabe como e onde sepultado
- Bom princípio! - exclamou Ricardo, pois não era ninguém menos que o próprio rei da Inglaterra. - Durante este ano fiz bastantes progressos na poesia. Se me encontro com Blondel, já não lhe fico atrás. Pobre Blondel! Que estará ele fazendo neste instante? Talvez esteja compondo canções de amor para as damas da Picardia e talvez já se esquecesse que teve um amigo que se chamava Ricardo...
E a tristeza apoderou-se novamente do rei. Este dirigiu-se outra vez para a estreita fenda e percorreu o olhar perdido pelo espaço.
De súbito, deu um passo para trás como se alguma coisa de extraordinário o tivesse surpreendido.
Em baixo, ao pé da torre do castelo, alguém cantava; alguém que ele conhecia, e aquela doce e melodiosa voz chegava-lhe ao coração. Sentia a voz cada vez mais perto à medida que o cantor, percorrendo a muralha, se ia aproximando da abertura que servia de janela ao rei e onde ele escutava, pensando que tudo aquilo era apenas um sonho.
As palavras da canção chegaram claramente aos seus ouvidos levadas pela brisa da tarde.
Se em cabana do vale tu vivesses
E se eu fosse lá no monte habitar
Como um rouxinol tu cantarias
Como ele canta de noite ao luar?
Esta era a primeira parte de uma canção que Ricardo e Blondel haviam composto alguns anos antes. Só eles a conheciam e por isso Blondel a cantava para encontrar o seu rei. Já cantara defronte de centenas de castelos, esperando sempre que o rei a ouvisse e, como resposta, lhe cantasse a segunda parte.
E, quando o trovador, perdida a esperança, ia sentar-se nas muralhas do castelo, com os olhos inundados de lágrimas, alguém, da janela da torre, começou a cantar:
Se lá no cume eu vivera
E habitasses a cabana do val
Pra ti fora eu como a cotovia
E cantaria na luz matinal
Era a segunda parte da canção. Blondel tinha encontrado o seu rei! Estava ali prisioneiro.
Cheio de contentamento pela sua descoberta, o trovador tornou a cantar a primeira parte para que o rei soubesse que ele ainda ali estava.
Imediatamente, sem mesmo querer saber se encontraria ou não alojamento para passar a noite, partiu de Dürenstein, correndo para o caminho que o conduzia ao canal da Mancha.
Muitos meses decorreram até que chegasse à Inglaterra mas, assim que se encontrou entre os seus, foi ter com Guilherme Longchamp, Lorde Chanceler, que se conservava fiel ao seu infeliz rei.
E, em 1194, desembarcou Ricardo Coração de Leão no pequeno porto inglês de Sandwich, livre enfim, graças aos esforços do amigo Blondel...

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