Um
dos fatos mais admiráveis sobre a civilização egípcia é o cuidado que dedicavam ao sepultamento
de seus mortos. Na verdade as múmias egípcias são
quase como um símbolo do tempo dos faraós, e a prática
milenar do embalsamamento fez chegar aos nossos dias, junto com os registros
nos templos e nas paredes das tumbas, as marcas da vida que levavam os
egípcios do mundo antigo.
Qualquer
sociedade humana tem nas suas práticas um reflexo do seu universo
mental. Não seria diferente com os egípcios. Eles eram extremamente
ligados ao rio Nilo e à
agricultura que as cheias
lhes permitiam fazer, vinculando muitos dos seus símbolos míticos
a elementos aquáticos e a fenômenos que podiam ser observados
no seu próprio "em torno".
Isso
poderá ser mais bem notado ao longo da nossa narrativa. No cerne
das práticas funerárias está embutida uma lenda,
explicativa de um ideal que já esteve preso à realeza com
exclusividade até a quarta dinastia egípcia. Posteriormente
os ritos foram estendidos a membros da corte até serem difundidos
por toda a população. Esta lenda é a do deus
Osíris.
Osíris
é, miticamente, a primeira de todas
as múmias, dando assim justificativa à prática
do embalsamamento. Ísis, sua esposa-irmã, opõe-se
à catástrofe da sua morte com a prática da magia,
o recurso da mumificação e a milagrosa concepção
de Hórus. A lenda não nos chegou através de documentos
egípcios, a não ser por fragmentos textuais, vinhetas e
algumas cenas em tumbas, mas já relacionadas às exéquias
de alguma personagem.
Quem
nos revela Osíris é Plutarco,
beócio da Queronéia, nascido por volta da primeira
metade do século I d.C. Essa lenda, mais que qualquer outra,
exerceu uma enorme influência no espírito egípcio.
Fica
claro para os estudiosos do Egito,
a antiguidade do culto a Osíris que tomou pujança
no Médio Império quando foi explicitamente refletido nas
práticas funerárias, independentemente do culto ao próprio
deus em templos específicos.
Mas vamos à lenda!
Rá,
o deus-sol, descobrindo
que Nut, a senhora dos céus, estivera em companhia de
Geb, a terra, lança sobre ela um castigo pelo qual a deusa não
poderia procriar em nenhum mês ou ano. O deus
Thot, também apaixonado por Nut, em um jogo com
a lua ganhou-lhe a sétima parte de cada uma de suas luminárias.
Juntando essas partes, que formavam ao todo cinco dias, acrescentou-as
aos trezentos e sessenta dias do ano. Dessa forma Nut pode gerar filhos.
No primeiro dia nasceu Osíris; no segundo Hórus
(o velho); no terceiro Seth; no quarto Ísis; e no
quinto dia, Néftis. Seth casou-se com Néftis
e Osíris com Ísis.
Osíris dedicou-se a civilizar seus súditos, desviando-os
do seu antigo estilo de vida nômade, indigente e bárbaro.
Ensinou-os a cultivar a terra e a aproveitar da melhor maneira os seus frutos; ensinou-os a trabalhar
com os metais e a fazer armas para defenderem-se das feras;
convenceu-os a viver em comunidade e a fundar cidades; deu-lhes um
conjunto de leis para que por elas o povo regulasse sua conduta e
instruiu-os na reverência e adoração aos deuses.
Ísis,
a irmã-esposa de Osíris, curava as doenças
dos homens e expulsava os espíritos malignos com magia; fundou
a família; ensinou os homens a fazer pão e às mulheres
todas as artes femininas. Osíris decidiu levar esses conhecimentos
ao resto do mundo e confiou a regência do seu trono a Ísis.
Durante a ausência de Osíris, seu irmão Seth tentou
apossar-se do trono, mas foi frustrado em suas intenções
por Ísis.
Osíris
regressou de sua viagem, concluída com êxito, e
Seth armou nova trama: tirou as medidas do corpo de irmão,
em segredo, e mandou fazer uma bela arca, adornada e realçada com
pedras. Deu uma festa em comemoração ao retorno de Osíris
e propôs que presentearia com a arca a quem nela entrasse e a ocupasse
com o próprio corpo. Todos os convidados entraram na arca mas ela
sempre resultava grande. Chegou a vez de Osíris cujo corpo, de
grande estatura, adaptou-se perfeitamente à arca. Seth e seus cúmplices
fecharam a arca lacrando-a e lançando-a no rio Nilo.
"O
dia do assassinato de Osíris
foi o 17º do mês de Háthor (novembro) quando o sol estava
na constelação de escorpião. De acordo com alguns,
Osíris estava no 28º ano de seu reinado e, de acordo
com outros, no 28º ano de idade.
Quando
a notícia do assassinato alcançou Ísis, que estava
na cidade de Coptos, ela imediatamente cortou uma das mechas dos seus
cabelos, colocou roupa de luto e vagou pelo país em estado perturbado
procurando a caixa que continha o corpo de seu marido".(1)
Sete
escorpiões escoltavam a deusa que chegou à cidade de
Pa-Sin em trapos e esgotada. Daquele jeito, e com tão ameaçadora
comitiva, não encontrou quem a hospedasse. Uma mulher fechou-lhe
a porta no rosto. Os escorpiões, vingando o insulto à
deusa, injetaram seu veneno em sua dirigente Tefen que entrou na casa
da mulher, encontrou o seu filho e picou-o.
O
veneno era tão poderoso que a casa foi envolvida em chamas. Uma
outra mulher, de nome Taha,
apiedou-se da deusa e a acolheu. Aquela outra, de nome
Usa, não encontrou água para apagar o incêndio
e correu em desespero com o filho nos braços.
Ninguém
a socorreu, mas a deusa Ísis
acabou por ter pena dela e fez com que uma chuva apagasse o incêndio.
Ordenou, também, que o veneno saísse da criança.
Usa, reconhecendo a deusa, implorou-lhe perdão e ofereceu presentes
a Ísis.
Ísis continuou a sua busca e soube, por algumas
crianças que brincavam à margem do rio, que a caixa procurada
havia passado por ali em direção ao mar.
"Nesse
meio tempo as ondas carregaram a caixa para a costa da Síria e
a lançaram em Biblos, e tão rápido repousou sobre
a terra, uma grande árvore (Erica) brotou de repente,
desenvolvendo-se toda em torno da caixa, cercando-a por todos os lados".
O
Nome do rei de Biblos era Melkart e o de sua esposa Astarte
(Ishtar, Ashtoreth).
Melkart
viu a árvore de tamanho descomunal e mandou cortá-la para
fazer com ela um pilar para o seu palácio. Ísis
chegou a Biblos e soube da árvore que cresceu da noite
para o dia e do destino que teve. Instalou-se à beira da fonte
onde as criadas da rainha apanhavam água. Começou a penteá-las
transferindo-lhes parte do perfume que emanava do seu corpo.
A
rainha notou a diferença em suas criadas e isso despertou o seu
interesse em conhecer quem as estava arrumando e educando. Ísis
foi levada à sua presença, mas não se revelou. A
rainha a fez ama do príncipe, a quem Ísis amamentou com
o dedo em lugar do seio. Punha-o toda a noite no fogo para que este lhe
consumisse a parte mortal. Transformava-se em uma andorinha e voava em
torno da coluna lastimando seu próprio destino.
Uma
noite a rainha entrou no quarto e viu o filho envolto em chamas e guardado
por sete escorpiões. Gritou e o rei e os guardas a acudiram, mas
ficaram paralisados diante da cena que presenciaram. Surgiu Ísis
que, com um gesto, apagou as chamas, revelando-se para os reis. Contando
a sua história explicou que, grata pela hospitalidade, decidira
tornar o príncipe imortal, mas a mágica fora interrompida
e não faria mais efeito.
A rainha se entristeceu, mas o rei, com a honra de acolher
uma deusa, deu-lhe a coluna de madeira de onde Ísis retirou a arca
que continha o corpo de Osíris. Depois envolveu a coluna em linho,
derramou sobre ela óleos perfumados e a devolveu aos reis como
lembrança e relíquia poderosa. A deusa voltou ao Egito escoltada
por outros dois filhos do rei de Biblos.
Em
determinado ponto da viagem ordenou que a caravana parasse e abriu a caixa
com o corpo do marido. Transtornada pela dor, gritou de forma tão
espantosa que um dos filhos do rei ficou louco; o outro, que olhou a deusa
em seu desespero, caiu morto de medo. Ísis ficou só e tentou
todas as fórmulas mágicas para trazer Osíris de volta
à vida. Transformou-se em um falcão e agitou as suas asas
sobre ele para restituir-lhe o sopro de vida. Num breve momento em que
seu intento foi conseguido, Ísis foi fecundada. Continuou levando
o corpo de Osíris para o Egito.
Quando
chegou ao seu país, escondeu a arca nos pântanos.
Enquanto
caçava à luz da lua, Seth encontrou a arca, abriu-a e viu
os restos do irmão. Furioso, despedaçou o corpo em catorze
pedaços e os espalhou pelo Egito. Isso fez com que Ísis
recomeçasse a sua busca, desta vez para reconstituir o corpo do
marido. Ajudada por Anúbis,
que tomou a forma de um chacal negro
para farejar os restos de Osíris, Ísis só não
encontrou o falo do deus que, atirado ao Nilo, fora devorado por um peixe.
Em cada local que Ísis descobriu uma parte do corpo de Osíris,
foi levantada uma capela.
Recomposto
o corpo de Osíris, Ísis chamou sua irmã Néftis
e os deuses Toth e Anúbis.
Todos juntos tentaram restituir a vida a Osíris. Anúbis embalsamou o
corpo do deus e surgiu assim a primeira múmia, envolta em linho e em
peles de animais, recoberta de amuletos. Nas paredes do sepulcro de
Osíris foram gravadas fórmulas rituais
e junto ao sarcófago foi colocada uma estátua semelhante ao deus que
ressuscitou, mas não pode mais reinar sobre a terra e tornou-se "rei do
lugar que fica além do horizonte ocidental".
Osíris
transformou esse lugar, de triste em um local fértil e rico de
colheitas.
Depois
do sepultamento Ísis voltou a se esconder nos pântanos. Quando
nasceu o seu filho Hórus, a mãe deu-lhe amor e invocou sobre
ele a proteção de todos os deuses.
Ensinou-lhe
a magia e o educou em memória do pai.
Hórus
cresceu como o sol nascente.
Ele próprio era um grande falcão que cortava os céus.
Quando ficou maior Osíris voltou à terra para fazer dele
um guerreiro. Hórus reuniu todos os fiéis a Osíris
e partiu sobre Seth para vingar a morte do pai, mutilando-o
e esterelizando-o. Seth,
por sua vez, transformou-se num grande porco negro e devorou o olho esquerdo
de Hórus e, assim, a lua parou de iluminar.
Ísis
suplicou a seu filho que pusesse fim ao massacre, mas Hórus, num
ímpeto de ódio, decepou a cabeça da mãe.
Thot
curou-a colocando uma cabeça de vaca em lugar da sua. A batalha
recomeçou sem vencedores ou vencidos.
Thot
curou Seth,
mas impôs que este restituísse o olho de Hórus. A
lua, então, voltou a brilhar. Os deuses levaram a questão
a julgamento e o processo durou oitenta anos. Seth acusou Hórus
de ilegitimidade.
Hórus
acusou Seth pelo assassinato do pai. Por fim os deuses decidiram que Hórus
ficaria como rei do Baixo
Egito e Seth como
rei do Alto Egito.
1 - BUDGE, E. A. T. Wallis. Osiris and the Egyptian ressurrection. New York: Dover Publications Inc., 2 ed., 1973, V. 1, p. 4.
2 - Ibidem, pp. 4-5.