Deixo aqui "pro cês" este excelente conto do Ricardo Azevedo, do livro Contos de Enganar a Morte. Pois se dessa a gente não escapa, só basta ironizá-la e rir o quanto puder até a hora da chegada da danada. Então divirtam-se!... Porque dessa a gente não escapa mesmo, hein? Muito bom, vale a pena ler!
Havia em uma terra, um caboclo, homem pobre que morava em um casebre com a mulher e quatro filhos. Era bom trabalhador, mas vivia miseravelmente e inconformado, por não conseguir melhorar de vida. Ainda mais agora que sua mulher estava grávida do seu quinto filho.
Logo que o menino nasceu, o caboclo disse à mulher:
— Vou ver se acho alguém que queira ser padrinho de nosso filho.
Montou o cavalo, fincou as esporas e partiu a todo o galope para a cidade. Enquanto galopava pensava: "Arranjar padrinho para o quarto filho já tinha sido difícil, quem ia querer ser compadre de um pé-rapado como ele?" E quanto mais pensava mais inconformado e triste ficava.
O dia passou, e ele ainda não tinha encontrado ninguém que aceitasse ser padrinho do seu filho. Voltava para casa desanimado, quando num entroncamento, deu de cara com uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada em uma bengala feita de osso.
— Se quiser, posso ser madrinha de seu filho – ofereceu-se a figura, com uma voz estranha.
Um tanto espantado o caboclo perguntou:
— Quem é você?
— Sou a Morte.
O caboclo nem cogitou de fazer pensamento do caso:
— Aceito. Você é justa e honesta, pois leva para o cemitério tanto os ricos quanto os pobres sem fazer diferenciação. Quero sim, que seja minha comadre, madrinha de meu filho!
E assim foi. Realizado batizado na igreja, a Morte chamou o caboclo de lado e lhe disse quase ao pé do ouvido:
— Fiquei muito feliz com seu convite; eu estou acostumada a ser maltratada; as pessoas fogem de mim; falam mal; xingam-me e amaldiçoam-me. Elas não entendem que só faço por cumprir minha obrigação. Na verdade - confessou a Morte, - você é a primeira pessoa que me trata com justeza e compreensão. E tem mais, quero retribuir sua gentileza sendo uma ótima madrinha para seu filho. E para isso, vou transformá-lo em um homem rico e famoso. Só assim você poderá criar, proteger e cuidar de meu afilhado.
A Morte explicou, então, que a partir daquele momento, o caboclo seria um médico.
— Médico? Eu? - pergunta, espantado, o caboclo. – Mas, não entendo nada de medicina!
— Preste atenção – disse ela. – Venda seu casebre e seu alqueire de terra e venha morar na cidade. Coloque na sua nova casa, uma placa dizendo-se médico. Quando for chamado para examinar um doente, se vir minha figura na cabeceira da cama, é sinal de que a pessoa vai ficar boa; em compensação se me enxergar no pé da cama, chame o coveiro porque o doente logo, logo vai esticar as canelas.
A Morte ainda esclareceu que só seria visível para o caboclo e logo após, sumiu na imensidão.
Dito e feito. Bastou o caboclo colocar a placa na frente de sua casa e logo apareceram as primeiras pessoas doentes. E ele não errava em nenhum diagnóstico; o doente podia estar desenganado, se ele dizia que ia viver, dali a pouco o doente estava curado. De outras vezes, dizia: "Não tem jeito!"
E não tinha mesmo. A fama do caboclo pobre que virou médico correu o mundo. E com a fama veio à fortuna.
Muitos anos depois, numa certa noite, bateram a porta do médico. Dessa vez não era nenhum doente. Era ela, a Morte. E foi logo falando:
— Compadre, tenho uma notícia triste para lhe dar: sua hora chegou. Seu filho já é homem feito. Estou aqui para levar você.
— Mas como! – gritou o médico, pulando da cadeira. – Agora que tenho uma profissão, ajudo as pessoas, acumulei riqueza e tenho fartura, você aparece para me levar! Isso não é justo!
A Morte justifica:
— Vá até o espelho e olhe para si mesmo – sugeriu. – Está velho. Seu tempo já passou.
— Lembre-se de que até hoje eu fui à única pessoa que tratou você com consideração!
A Morte balançou a cabeça.
— Quer ver uma coisa? – perguntou ela.
E num passe de magia, transportou o médico para um lugar desconhecido e estranho. Era um enorme salão, cheio de velas acessas, de todos os tipos, tamanhos e qualidades.
— O que é isso? - quis saber o médico.
Cada uma dessas velas corresponde à vida de uma pessoa. As velas pequenas são vidas que já estão chegando ao fim. Olhe a sua!
E mostrou um toquinho de vela, com a chama tremula, quase apagando.
— Mas então minha vida está por um fio! – exclamou o médico, um tanto assustado.
A morte fez que "sim" com a cabeça. Em seguida, do jeito que veio, voltou com o médico para casa.
— Tenho um último pedido a fazer – suplicou o velho médico, já enfraquecido, deitado na cama. – Antes de morrer, gostaria de rezar o Pai-Nosso. Mas, me prometa uma coisa: que só vai me levar depois que eu terminar a oração.
A Morte concordou, e o velho caboclo começou a rezar:
— Pai-Nosso que... – parou e sorriu.
— Vamos lá, compadre – inquiriu a Morte. – Termine logo com isso que tenho mais o que fazer.
— Coisa nenhuma! Exclamou o velho saltando triunfante da cama. – Você jurou que me levaria somente quando eu terminasse de rezar. Pois então, pretendo levar anos para terminar minha reza...
Ao perceber que fora enganada, a Morte resolveu ir embora, não antes de fazer uma ameaça:
— Eu pego você, me aguarde!
Conta-se que, passado alguns anos, o médico viajando, deu com um corpo caído na estrada. O velho tentou reviver o corpo inerte, mas não havia mais jeito.
— Que coisa triste, morrer assim, sozinho no meio da estrada!
Antes de seguir em frente, o bom médico, tirou o chapéu e rezou o Pai-Nosso. Mal acabou de dizer amém, o morto que não estava morto, abriu os olhos e sorriu. Então, o médico caiu em si. Era a Morte fingindo-se de morto.
— Agora você não me escapa!
Nesse mesmo instante, naquele lugar desconhecido e estranho, uma pequena vela estremeceu e ficou sem luz.
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